Há muito tempo, numa galáxia distante, na órbita de um mundo mil vezes melhor que este, vivia um ratinho, numa nave espacial controlada por outros ratinhos. Este ratinho era igual a todos os outros em muitos aspetos, tinham todos o mesmo tipo de treino, treinados para defender a sua nave de predadores delinquentes, aqueles egoístas que dizem querer colonizar a nave dos ratinhos, torna-los num só, unifica-los sem os colonizados poderem dizer que não, mas este ratinho tinha um segredo, que ninguém podia saber, nem mesmo que o ratinho quisesse, pois ninguém falava com ele.
É verdade. Podem acreditar
em mim, este ratinho não comunicava com os outros da sua espécie, da sua nave,
do seu mundo, pois não lhe falavam. Não poderei dizer concretamente se não lhe queriam
falar exatamente, mas a comunicação entre os outros tripulantes também era
bastante limitada, de qualquer forma, os ratinhos não viviam numa democracia,
como a maior parte dos países deste mundo em que vivo, tinham um líder, a quem
não podiam desobedecer. Este líder comandava a nave e o mundo todo.
O líder não era um ratinho,
o que tornava tudo mais complicado, era uma ratazana, que se limitava a olhar
para o seu umbigo, não que tivesse muita escolha, era gorda como uma das luas,
e gostava muito de comer, há quem diga que quando se chateava, comia os
ratinhos da tripulação, mas não posso confirmar, e mesmo que pudesse também não
sei se o quereria fazer. Esta ratazana detestava que lhe respondessem,
raramente fazia perguntas, ditava o que era feito e coitado de quem se opusesse,
se não fosse comido era, certamente, posto fora da nave.
O resto da tripulação,
contou-me a nossa personagem principal, era impecável, mas tão impecável que
tornava a interação terrível. Não havia espaço para expressar opiniões, não
havia espaço para conversa fiada, todos tinham uma função e um horário a
cumprir. Raramente se podiam dar ao luxo de parar o seu trabalho, a menos que o
líder, Rei Kaj Nance, se encontrasse na sua típica sesta, ao terceiro luar do
dia. A essa hora, embora com muito cuidado e em barulho quase inexistente, a
tripulação podia falar. Alguns, com medo de que os guardas reais estivessem a
fingir estar do lado da tripulação e fossem contar sobre o que se falou ao rei,
permaneciam com o contacto visual, como hábito, formando a sua própria linguagem,
por assim dizer. O único ratinho tripulante com quem ninguém falava, era o protagonista,
Chi, como já sabem. Mas um dia, a meio do terceiro luar, alguém veio falar com ele,
um outro ratinho insignificante com quem quase ninguém falava, mas ele também não
tentava falar com alguém. Quando viu Chi a olhar fixamente para um caderno nas
suas mãos, Calli sentiu que devia dar uma oportunidade à ironia do destino de
se provar útil, e moveu-se até junto de Chi, que não tirou os olhos do caderno,
nem pestanejou.
-Olá.
Chi, sem dar nas vistas,
olhou para o lado e viu o seu colega, sério, a olhar para o seu caderno.
-Olá. -respondeu Chi. – Não
sabia que sabias falar.
-Agora já sabes. O que
estás a ver?
Moveram agora, os dois, os
olhares para o caderno, depois para o seu redor, e de volta para o caderno.
-Isso é a planta da nave?
Onde é que foste buscar isso? Sabes que se os guardas te apanham haverá sérias consequências
para teres isso na mão, se o rei te apanha não duvido que te coma! Imagina o
que seria venderes isso para um inimigo qualquer, seria de loucos! – disse Calli,
exaltado.
-Relaxa, não é a planta desta
nave. É a planta da minha futura nave. Quando crescer, vou ser capitão de uma nave
maior que esta, queres ver o desenho? Fui eu que fiz. Mas não podes contar a ninguém,
não quero ficar nas más graças do rei.
-Chi, sabes que o rei não pode
sequer sonhar que queres fugir da nave, certo? Sabes perfeitamente que não podes
sonhar sequer que o queres fazer, se ele sente que há alguém a planear fugir,
atira-o para fora da nave. De certeza que não queres isso, dizem que o ar lá
fora é irrespirável.
O ratinho protagonista,
revirou os olhos, assentiu e olhou para fora da nave, pela janela mínima que se
encontrava acima da sua cabeça, já se fazia tarde, era uma questão de minutos
até o rei acordar e os ratinhos sabiam que se ficassem à conversa, seriam
descobertos. Quando deram por isso, tinham dois dos guardas reais, com as suas
armas ao peito, a olhar para eles, demasiado perto para conseguirem escapar.
Foram, então, apanhados a falar sobre a conspiração que Chi planeava, e os
guardas tinham ouvido o suficiente para saberem o que fazer. Pegaram neles
pelos braços e sem ser dirigida uma única palavra, os tripulantes sabiam
exatamente para onde iam, e o rei aguardava-os, recém acordado e cheio de
energia para atirar alguém nave fora.
Ao chegarem, o rei nem se
importou o suficiente para olhar para os julgados, perguntou a um dos guardas o
que se tinha passado, ao que este respondeu que Chi tinha uma planta da nave.
-Estou a ver. E tu, para
que queres a planta da nave? Alguma coisa a dizer em tua defesa?
-Não é a planta da nave. –
respondeu Chi, completamente amedrontado.
-Então o que é isto que
tenho na mão? – questionou, impaciente, o rei, enquanto examinava melhor o
esboço de uma nave espacial.
-A minha futura nave. – Retorquiu
o ratinho, confiante. Do canto do olho viu Calli, assustado, a fazer-lhe sinais
com a cara, como quem diz para se calar. Chi ignorou.
-Hm. Futura nave? Vocês,
ratinhos, nasceram para me servir, não há hipótese nenhuma de saírem desta nave
sem ser a serem expulsos, e mesmo que assim seja, ficam à deriva na órbita até
explodirem, nunca terias acesso a tecnologia de ponta, não me faças rir.
Guardas, pela porta da esquerda. Só o convencido, o outro fica.
Sem mais demoras, os
guardas abriram a porta da esquerda, que dava para um espaço confinado com uma
porta de vidro. Largaram o ratinho, e entraram para dentro da sala do rei,
deixando Chi sozinho. Sem sequer se dar conta disso, a porta de vidro abriu-se
e Chi voou fora da nave.
Deu por si sozinho, no
escuro se não fossem pelas chamas que davam combustível à nave de onde saiu.
Chi olhou em volta, a sentir os olhos lacrimejar, estava mesmo sozinho. Fechou
os olhos e esperou nunca mais voltar a abri-los.
Não faz ideia de quanto
tempo passou, mas o seu plano não tinha resultado, Chi abriu os olhos e estava
numa sala branca e sem cheiro, completamente vazia se não fosse pela cama em
que se deitava. Do nada, abriu-se uma fenda na parede, e entrou um outro
ratinho, vestido de branco com um símbolo cor de laranja nas costas, este,
olhou para Chi, estendeu a pata e apresentou-se.
-Olá, sou o Shiro. Estavas
à deriva na órbita quando te vi, estavas como muitos já estiveram, então peguei
em ti e trouxe-te para a minha humilde nave, que pouco mais de um cubículo é.
Precisas de alguma coisa?
Chi estava demasiado assustado
para responder, ao que Shiro apenas lhe disse que o seguisse, e assim foi
feito. Passaram pela fenda e foram ter ao que parecia uma enorme cidade. Chi
olhava em volta chocado, Shiro não disse que a nave era um cubículo? Alias, não disse que estavam numa nave?
-Sei o que estás a pensar,
pois, esqueci-me de te mencionar que, tudo o que vês à tua volta é uma réplica
do mundo lá em baixo, mas não é real. Estás a usar um chip no teu braço que te
faz sentir que isto é real, mas não passa de uma ilusão. Bom, sem mais demoras,
vem comigo até aquela loja, lá poderemos falar à vontade.
Seguiram o curto caminho
até a dita loja. Sentaram-se numas cadeiras no exterior e Shiro pediu que Chi
lhe explicasse o que tinha acontecido, ao que, prontamente, o ratinho desabafa.
-Uau, essa nunca tinha
ouvido. E quanto ao teu sonho, como estás a pensar fazer agora?
-Honestamente, perdi
qualquer esperança de poder executar o meu plano. Gostava de poder salvar os
outros ratinhos, mas não só não tenho os meios, como falta-me a força. Seria impensável
ir contra o rei e os seus guardas. Nem deve haver maneira de entrar na nave sem
ser detetado. – Comentou Chi.
Shiro suspirou, pensativo.
Tinha que haver alguma coisa que pudesse ser feita, realmente posto em perspetiva,
aqueles ratinhos estavam a ser explorados por um rei muito mau, egoísta e egocêntrico.
Depois de uns minutos em silêncio, Shiro sorriu.
-Tenho uma ideia. Vamos até a minha oficina, o tal cubículo, não
tenho materiais suficientes para te construir uma nave, mas com o que tenho e a
tua criatividade talvez possamos fazer alguma coisa. Vamos.
Chi levanta-se e Shiro
abriu logo mais uma fenda. Esta levou-os até a oficina, muito desarrumada por
sinal, cheia de papeis no chão, invenções inacabadas e alguns materiais de
construção fora do sítio. Shiro sentou-se em frente a uma secretária com um
papel branco e um lápis em cima, pegou no lápis, dirigiu-se a Chi e pergunta:
-Então, temos ideias?
Umas horas depois, puseram-se
ao trabalho, construindo o protótipo desenhado pelos dois. Chi recuperou a
esperança, vendo o trabalho já completo, e pôs em prática a sua memória visual
e desenhou um esboço da sua antiga nave de trabalho e ponderou as melhores
entradas com Shiro. Concordaram num plano e puseram-no em prática.
Viajaram até perto da nave da
ratazana gorda e ligaram o turbo, embatendo com imensa força contra o escape da
nave atacada. Chi sabia que o rei, com medo de ser uma invasão, pois este para alem
de egoísta também era cobarde, esconder-se-ia num compartimento interior inalcançável,
deixando a porta por onde Chi tinha sido ejetado sem vigilância. E foi por aí
que os invasores entraram, ligaram um compartimento da sua nave à porta de
vidro, para não correrem perigo de saírem espaço fora, e entraram na nave,
passo um, bem-sucedido. Agora passo dois…
Os ratinhos, assustados com
a possível invasão, não estavam nada à espera de ver o seu antigo colega, Chi,
dentro de um fato enorme de robot, com duas cabeças.
-Tripulação, nós somos o
Kuro. Viemos acudir-vos. Escondam-se, iremos tratar da Ratazana Gord-
-Rei Kaj Nance. – Disse Chi.
-Ele não deixa de ser uma
ratazana gorda…
-Escondam-se, onde melhor
souberem, trataremos do rei sem vos incomodar, ele não vos voltará a fazer mal!
Força! – exaltou-se Chi. Shiro assentiu e gritou, seguido de todos os ratinhos
espetadores.
Os tripulantes fizeram o
sugerido, e os invasores dirigiram-se até ao compartimento onde o rei se
escondia. A meio caminho, separaram o fato de robot transformando-se em dois
robots menores, Chi seguiu em direção ao rei e Shiro foi evacuar a tripulação.
-Voltamo-nos a encontrar,
portanto…
Chi, aterrorizado pela voz
daquele que mais medo lhe metia, virou-se para trás e sem ter tempo de reação,
o rei abriu a sua boca de ratazana e engoliu Chi. Ninguém estava à espera, huh.
O rei saiu do compartimento e andou em direção à tripulação que estava a ser
evacuada para a nave de Shiro.
Felizmente, a tripulação já
se encontrava a salvo quando o rei, a arrotar, chegou até perto deles.
-Chi! Estamos a salvo, onde
estás? – gritou Shiro, sem entender porque é que o rei se dirigia cada vez mais
aos refugiados.
De repente, o rei pára de
andar, ouve-se um grunhido e o rei cai de joelhos, a fazer menção de vomitar. Fazendo
mais barulho, a ratazana vomita o corpo vivo de Chi, que, atordoado, se levanta.
Posicionando o seu braço mecanizado num ângulo reto, dispara um jato vermelho
que acertou em cheio na barriga gorda da ratazana, que sem demora alguma,
explodiu em mil pedacinhos pela nave inteira.
Chi virou-se para trás, Shiro
corre a seu alcance e pergunta-lhe se ele está bem. Chi responde que sim,
suspira e olha em volta, a tripulação na nave de resgate aplaude. Shiro ri e
Chi acompanha-o, em alívio por se terem visto livres da figura assustadora que
ditava nos ratinhos. Todos os resgatados regressaram à nave, completamente suja
de ratazana desfeita e sugeriram, a Shiro e Chi, limparem a nave e criar uma
civilização nova. Ao que, estes, concordaram e procederam a sair dos seus fatos
robóticos, os ratinhos procederam então à limpeza da nave.
Pouco tempo depois, deu-se
vida à Saki, a nova civilização de ratinhos no espaço, sem um rei, onde todos
são livres de expressar a sua opinião e falar. E capitão desta nave, tornou-se
Chi e co-capitão, Shiro e nunca mais tiveram que sussurrar durante o terceiro luar.
~K